Com primeiras CRAs emitidas, especialistas discutem os próximos passos para viabilizar um mercado de conservação no Brasil
O lançamento das primeiras Cotas de Reserva Ambiental (CRA) do Brasil foi celebrado nesta terça-feira, 2/12, no Museu do Amanhã (RJ), por gestores públicos e organizações envolvidas na implementação do Código Florestal, um avanço esperado há mais de uma década. No debate realizado durante o 1º Encontro Estadual do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e dos Programas de Regularização Ambiental (PRA) no RJ, representantes do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), da Associação Patrimônio Natural (APN) e da BVRio discutiram como transformar o instrumento em valor econômico real para proprietários rurais e para o país.
Para Maurício de Moura Costa, diretor e cofundador da BVRio, o lançamento das primeiras Cotas de Reserva Ambiental inaugura uma etapa que exige enfrentar o principal desafio econômico do instrumento: o desequilíbrio estrutural entre oferta e demanda. Embora concebidas para permitir a regularização ambiental, as CRAs nascem em um cenário em que o país possui aproximadamente 70 milhões de hectares aptos à geração de cotas diante de um déficit estimado em apenas 17 milhões de hectares.
“A razão inicial da CRA é a regularização ambiental, mas ela esbarra numa dificuldade econômica: a demanda para regularização é muito inferior à oferta de potenciais cotas. E pela regra número um da economia, se você tem muita oferta e pouca demanda, você não tem um mercado funcional”, afirmou.
Maurício defendeu que a continuidade das CRAs depende de criar novas fontes de demanda permanentes. Por já serem validadas pelo governo e possuírem rastreabilidade e critérios técnicos sólidos, as CRAs têm potencial para atuar além da compensação legal, especialmente no futuro mercado regulatório de carbono brasileiro. “É natural, desejável e quase mandatório incluir as CRAs na representação da atividade de conservação dentro do mercado de carbono. Elas já passaram por um processo extensivo de validação, incorporam os elementos metodológicos necessários e podem gerar créditos que remunerem quem conserva, dando escala ao mercado brasileiro de emissões”, explicou.
Maurício também apontou o Tropical Forests Forever Fund (TFFF) como outra frente estratégica para ativar o potencial das CRAs. Segundo ele, o fundo, concebido para financiar pagamentos por serviços ambientais em países tropicais, poderá operar com volumes expressivos de recursos, e as CRAs são a ferramenta mais preparada para sua implementação no Brasil. “A estrutura da CRA está feita. Ela é auditável, validada e pronta para ser usada. Então a pergunta que fica é: por que não integrar as CRAs à implementação do TFFF quando ele entrar em operação no Brasil?”
“Mercado por si só não resolve. É preciso integridade e legitimidade”
A diretora de Florestas e Políticas Públicas da BVRio, Roberta del Giudice, ampliou o debate numa análise sobre os instrumentos econômicos para conservação. Ela explica que o objetivo desses instrumentos é alterar a arquitetura econômica vigente, pois os efeitos das mudanças climáticas exigem uma transformação profunda da economia para garantir um futuro possível. Mas alerta: “Usar o mercado para proteger a floresta é uma ideia sedutora, mas insuficiente em si mesma.”
Roberta destacou que mecanismos econômicos ambientais só funcionam quando são concebidos com compreensão do contexto e capacidade de adaptação. Instrumentos como Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), reposição florestal, fundos de conservação, créditos de logística reversa e as próprias CRAs precisam operar dentro de um ecossistema articulado, e não como soluções isoladas. “Nenhum mecanismo se sustenta sem processos participativos, transparência e governança robusta. O mercado por si só não resolve. É preciso integridade e legitimidade”, afirmou.
Roberta enfatizou cinco pilares essenciais para que esses instrumentos ganhem escala e legitimidade:
- conectividade entre políticas, para que diferentes mecanismos não operem de forma isolada;
- contextualização territorial, econômica e sociocultural, já que soluções que funcionam em uma região podem fracassar em outra;
- adaptabilidade, diante de mudanças climáticas, econômicas e sociais;
- estabilidade institucional, necessária para dar previsibilidade aos investimentos; e
- coprodução, garantindo processos participativos que sustentem a confiança e a continuidade dos instrumentos.
Ela citou a experiência do Responsible Commodities Facility (RCF), um programa de financiamento de soja de baixo desmatamento no Cerrado, liderado pela SIM (Sustainable Investment Management), como exemplo de mecanismo construído com forte participação de produtores, empresas e sociedade civil. Estruturado ao longo de dois anos de consulta e desenho técnico, o RCF demonstra como instrumentos financeiros podem ganhar credibilidade e adesão quando respondem a uma necessidade real do território e contam com auditoria independente, governança transparente e objetivos claros de conservação.
O evento reforça que o Código Florestal permanece como a maior infraestrutura climática já construída pelo Brasil e que a CRA, ao começar a circular, representa uma oportunidade concreta de transformar conservação em valor econômico. Com governança sólida, participação real e integração entre instrumentos, o país tem condições de avançar para modelos de financiamento capazes de remunerar quem conserva e de fortalecer sua liderança ambiental para além da COP30.