Desafios e avanços na implementação dos créditos de logística reversa no Brasil: análise do Decreto Federal 11.413/2023

Com a publicação do Decreto Federal 11.413/2023 em fevereiro deste ano, o mecanismo de créditos de logística reversa finalmente ganha reconhecimento em âmbito federal após a adoção progressiva de regulamentações estaduais que contemplam seu uso no contexto da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), a Lei 12.305/2010. 

O Decreto representa mais uma etapa na consolidação dos créditos como uma ferramenta financeira para viabilizar o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) associados  às obrigações de logística reversa no Brasil. Trata-se da consagração desse tipo de mecanismo no contexto dos resíduos sólidos e demonstra um importante passo adiante na gestão sustentável de resíduos no país.

Apesar dos avanços, inevitavelmente existirão barreiras de implementação devido à complexidade das cadeias de logística reversa e à própria natureza jovem do sistema. Com base em sua experiência desenvolvendo o mecanismo de créditos ao longo da última década, a BVRio assume o compromisso de se posicionar, de forma a subsidiar o governo e órgãos reguladores, bem como empresas e organizações de catadores, com uma análise geral do Decreto.

Sobre a criação dos créditos de logística reversa

Em 2010, a PNRS introduziu o conceito de Responsabilidade Estendida do Produtor (EPR) no país, exigindo que fabricantes e importadores garantissem a coleta e destinação adequada dos produtos no fim de sua vida útil. Chamada de ‘logística reversa’, essa obrigação impôs a responsabilidade compartilhada para setores como pneus, óleos lubrificantes, baterias, pesticidas, lâmpadas fluorescentes, produtos elétricos e eletrônicos, e embalagens em geral. Isso gerou desafios para as empresas afetadas, que não tinham controle sobre os resíduos gerados por seus produtos, ao passo que o governo, mesmo tendo proposto esta nova política, não apresentava um mecanismo efetivo para implementação da logística reversa. 

A BVRio identificou a necessidade de desenvolver um mecanismo de mercado para auxiliar no cumprimento dessas novas obrigações, ao mesmo tempo que reconheceu a oportunidade de conectar empresas de bens de consumo a cooperativas e centenas de milhares de catadores que já realizavam o serviço ambiental de coleta de materiais residuais no país. Criamos, assim, a base para o primeiro sistema de créditos de resíduos do mundo: os Créditos de Logística Reversa, uma solução que beneficiaria ambos os lados, empresas e catadores, e contribuiria para o cumprimento das obrigações legais. 

Ao longo dos últimos anos, o conceito de créditos (também sob o nome de “certificados”) de logística reversa foi amplamente adotado no Brasil de maneiras diversas, e tem sido uma parte fundamental da solução para as empresas que precisam cumprir com a legislação. O mecanismo utiliza notas fiscais eletrônicas de venda de materiais para a cadeia de reciclagem como documento-base comprobatório e direciona recursos para os serviços de coleta e triagem realizados, em grande parte, por organizações de catadores de materiais recicláveis. 

  1. Modalidades de Créditos: escrutinação

O Decreto federal 11.413/2023 estabelece três modalidades de créditos para cumprimento das obrigações de logística reversa. O sistema criado tem caráter voluntário (Art. 2º), ou seja, permite às empresas que cumpram suas obrigações de logística reversa por meio dos créditos (art. 26) mas prevê também que outras formas de cumprimento da lei podem ser adotadas – as quais deverão estar sujeitas a condições semelhantes (necessidade de Certificado de Destinação Final e verificador, art. 23). É importante analisar de forma crítica algumas questões relacionadas a essas modalidades, que são as seguintes:

(i) Certificado de Crédito de Reciclagem de Logística Reversa (CCRLR): Emitido em favor das organizações que realizaram a atividade de logística reversa, com acertado foco nas organizações de catadores, e pode ser vendido às empresas.

Este é o modelo original dos créditos de resíduos, de pagamento por serviços performados. O Decreto, no entanto, vai mais além e expande o conceito para abarcar outras ações que já vêm ocorrendo no Brasil e estabelece dois outros tipos. 

(ii) O Certificado de Estruturação e Reciclagem de Embalagens em Geral (CERE): Serve para comprovar a logística reversa e reciclagem realizadas no contexto de um “projeto estruturante”, implementado por empresas com organizações de catadores. Tais projetos devem ter de 2 a 5 anos e podem envolver parcerias formais com os Municípios titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos urbanos. Em tais casos, o Decreto estabelece que as metas quantitativas poderão ser cumpridas independentemente do tipo de material recuperado. Se, por um lado, isso visa a favorecer arranjos positivos entre as organizações de catadores e os serviços públicos de limpeza urbana, por outro a flexibilidade quanto aos materiais a serem usados para o cumprimento das metas pode resultar em distorções indesejáveis. Por exemplo, empresas que usam materiais de baixa reciclabilidade ou baixo valor de mercado pós-consumo poderão cumprir suas obrigações com materiais que sejam mais baratos e/ou fáceis de coletar e reciclar. Isso pode comprometer o estímulo ao desenvolvimento e uso de materiais mais recicláveis e a coleta de materiais de menor valor de mercado.

(iii) Certificado de Crédito de Massa Futura: Permite que uma empresa antecipe a contabilização da logística reversa realizada em um “projeto estruturante” financiado por ela. Embora essa modalidade busque viabilizar projetos com maiores investimentos, a contabilização prévia pode gerar problemas, imprecisões e distorções. O Decreto não aborda adequadamente a comprovação das atividades que embasam a emissão dos créditos futuros nem como lidar com possíveis falhas na produção planejada e a quantidade esperada de logística reversa. Além disso, não se esclarece como e quando ocorreria a reconciliação desses créditos futuros com as quantidades efetivamente recuperadas. Associado a isso, o artigo 15, parágrafo 4, menciona a necessidade de Nota Fiscal (NF) e Certificado de Destinação Final de Resíduos (CDF) para a emissão do Certificado de Crédito de Massa Futura, embora essa comprovação não seja possível no momento da emissão dos créditos, mas somente em momento posterior, quando a atividade for efetivamente realizada. Portanto, o cumprimento da lei relacionado aos créditos de massa futura deveria estar condicionado a essa comprovação futura.

  1. Logística reversa integral: desde a coleta até a destinação final adequada

O Decreto adota um conceito abrangente de logística reversa, que engloba todas as etapas necessárias para garantir a devolução adequada dos materiais coletados ao ciclo produtivo ou a outra forma de destino final apropriada. Além de exigir a apresentação das Notas Fiscais de venda do material reciclável, o decreto também prevê o requerimento do Certificado de Destinação Final (CDF), emitido por meio do Manifesto de Transporte de Resíduos do Sinir (Art. 8, 15, 20, 23).

Esse enfoque é bastante interessante, pois implica o rastreamento completo da cadeia de logística reversa, desde a coleta até a destinação final efetiva dos materiais. Dessa forma, evita-se a dupla-contagem ao longo da cadeia, uma vez que um mesmo volume de material não pode receber mais de um CDF. No entanto, a implementação desse conceito pode apresentar desafios práticos devido à complexidade que essa cadeia de logística reversa pode apresentar.

  1. Pluralidade de sistemas

O Decreto  tem um caráter amplo, aplicável à gestão de resíduos sólidos em geral, incluindo todas as embalagens e produtos sujeitos à logística reversa (Art. 2º e Art. 6º). Prevê também a possibilidade de implementação de sistemas integrados, nos quais múltiplos atores e soluções alternativas podem ser adotados (Art. 3º, parágrafo III). 

Essa abordagem cria um ambiente propício para a existência de uma pluralidade de sistemas de logística reversa, permitindo diferentes abordagens e estratégias. Além disso, o decreto adota uma definição ampla dos atores envolvidos no sistema de créditos, o que contribui para a diversidade e flexibilidade na implementação dos sistemas de logística reversa.

  1. Atores envolvidos 

(i) Empresas: A definição de “empresa” estabelecida no Decreto (Art. 5º) identifica de forma completa as entidades sujeitas à obrigação de logística reversa, incluindo explicitamente as detentoras de marcas e também aquelas para as quais estas terceirizam o envase, a montagem ou a manufatura de produtos e embalagens. 

(ii) Entidade Gestora: A definição de “entidade gestora” (Art. 5º, parágrafo VIII) foi elaborada de forma abrangente, permitindo a inclusão de empresas de consultoria que já desempenham esse papel. Isso corrige o problema existente no Decreto anterior (11.044/2022), revogado pelo presente, que restringia essa função a entidades representativas do setor empresarial. 

(iii) Priorização de Catadores – Em linha com a PNRS, e em paralelo ao recém publicado Decreto 11.414/2023, que retomou o Programa Pró-catadores, o presente Decreto reforça a prioridade dada a catadores e catadoras, sejam individuais ou vinculados a cooperativas ou outras formas de organização, e fornece três elementos objetivos para tal:

a) Os créditos tipo CERE e Certificado de Massa Futura devem envolver projetos estruturantes realizados necessariamente com catadores;

b) As notas fiscais provenientes de organizações de catadores têm prioridade sobre as de outros operadores no caso dos créditos tipo CCRLR (Art. 3, par. X; Art. 15, par. 5 e 6; Art. 17; Art. 22 par. 1). No entanto, não está claro como essa priorização será operacionalizada, provavelmente requerendo um balanço de massa centralizado feito pelo verificador;

c) Apenas notas fiscais provenientes de organizações de catadores poderão ser emitidas para intermediários/agregadores da cadeia de reciclagem (Art. 15, par. 7). Considerando que a maioria das organizações de catadores não têm capacidade para vender diretamente para a indústria – por limitações como infraestrutura insuficiente, falta de capital de giro, etc., esses intermediários têm um papel fundamental que deve ser preservado. Um aspecto que deixa dúvidas, no entanto, é como será operacionalizada a necessidade do Certificado de Destinação Final (CDF) nesses casos, já que, para conseguir o CDF de um material vendido por cooperativas, a entidade gestora precisará do envolvimento direto dos agregadores. Assim, é de se esperar que estes participem da partilha do benefício resultante dos créditos, como forma de se engajar no sistema (quando seu material não for proveniente de cooperativas, o que acabaria gerando dupla contagem).

(iv) Agregadores: O Decreto permite a participação dos agregadores ou intermediários no sistema de créditos, não apenas os catadores. No entanto, com o objetivo de simplificar a trajetória dos materiais recicláveis, serão aceitas apenas notas fiscais de agregadores emitidas diretamente aos recicladores. Isso exclui a possibilidade de existirem agregadores em sequência na mesma cadeia de logística reversa (Art. 15, par. 8).

(v) Verificador de resultados: O Decreto estabelece a figura do verificador de resultados, uma pessoa jurídica responsável por custodiar as informações, verificar os resultados de recuperação de produtos ou embalagens e homologar as notas fiscais eletrônicas emitidas pelos operadores. Essa função é fundamental para garantir a imparcialidade dos resultados, uma vez que o verificador atua como uma terceira parte isenta de interesses. É importante ressaltar que podem existir múltiplos verificadores de resultados, mas eles devem operar em um ambiente de interoperabilidade integrado ao Sinir (Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos), assegurando uma base de dados única, a troca de informações padronizadas e a emissão de relatório anual (Art. 30). Essa abordagem é essencial para permitir uma verificação centralizada, evitando a duplicidade de contagem entre sistemas e minimizando a duplicidade ao longo da cadeia de reciclagem.

Conclusão: A necessidade de análise e colaboração para superar desafios de implementação

A publicação do Decreto Federal 11.413/2023 representa um marco importante na consolidação dos créditos como uma ferramenta financeira para viabilizar o Pagamento por Serviços Ambientais no contexto das obrigações de logística reversa no Brasil. Essa medida demonstra o comprometimento do país em impulsionar avanços significativos na gestão sustentável de resíduos, promovendo a economia circular e incentivando práticas ambientalmente responsáveis.

O enfoque amplo do Decreto, procurando abranger toda a cadeia, assim como uma pluralidade de sistemas e atores envolvidos, é louvável. No entanto, devido à complexidade das cadeias de logística reversa, ainda existe uma série de desafios práticos a serem superados. É essencial que empresas, órgãos reguladores e organizações de catadores trabalhem em conjunto para garantir uma implementação eficaz e adequada dos créditos e maximizar seus benefícios ambientais e socioeconômicos.

A BVRio, enquanto criadora desse mecanismo de mercado, compromete-se a continuar colaborando ativamente com todas as partes interessadas. Por exemplo, recentemente elaboramos e disponibilizamos um Guia de melhores práticas para sistemas de crédito contendo princípios, critérios e recomendações. O objetivo é ajudar a promover uma gestão de resíduos mais eficiente e sustentável em todo o país, impulsionando a economia circular de forma inclusiva e transparente.