Para além dos créditos de carbono: Potencial do financiamento climático para a conservação das florestas no Brasil

Por Beto Mesquita, Diretor de Florestas e Políticas Públicas da BVRio

Superando as expectativas, o financiamento para o clima foi tratado como uma questão-chave na COP 27. Porém, a decisão histórica de prever um fundo de perdas e danos para os países em desenvolvimento e mais afetados pelas alterações climáticas no Pacto de Implementação de Sharm el-Sheikh permanece, na prática, indefinida. O pacto ainda não traz nenhuma definição sobre as regras de funcionamento do fundo, um resultado muito aquém do que é necessário ser implementado para aumentar a ambição climática no mundo.

A BVRio fomentou as discussões acerca do financiamento climático para a conservação das florestas tropicais  no Brazil Climate Action Hub, o espaço da sociedade civil na COP 27. Trouxemos para a discussão a ideia de que o financiamento climático deve ir além dos resultados amarrados aos créditos de carbono, sem perder as salvaguardas e a integridade. Para Pedro Moura Costa, co-fundador e presidente do conselho, o Artigo 6 do Acordo de Paris, que trata dos instrumentos para a criação de um mercado global de carbono, não será tão promissor quanto esperado. Ele acredita – e temos ativamente criado soluções financeiras e abordagens alternativas para que isso aconteça – que o financiamento climático deve ir além dos créditos de carbono para alavancar iniciativas de conservação e restauração das florestas no Brasil. 

Desafios e oportunidades

O cenário atual é, no mínimo, desafiador. Primeiro, é necessário fortalecer um movimento global forte e amplo para acelerar a proteção e revitalização dos ecossistemas e colocar o mundo no caminho de um futuro sustentável. A Década das Nações Unidas da Restauração de Ecossistemas (2021-2030) é a única oportunidade que o mundo tem para evitar mudanças climáticas catastróficas, proteger a biodiversidade e manter serviços ambientais essenciais, como segurança alimentar e abastecimento de água. 

Enquanto isso, o Brasil – incluído no topo da lista dos maiores emissores de gás carbônico do mundo (1) – desperdiça a enorme oportunidade de atrair investimentos devido à lentidão da efetiva implementação do Código Florestal. Se cumprido, o código tem o potencial de conservar mais de 150 milhões de hectares de vegetação nativa e armazenar cerca de 100 GtCO2. Porém, a situação atual é a seguinte:  o Brasil precisa restaurar pelo menos 21 milhões de hectares de vegetação nativa apenas para entrar em compliance com este poderoso marco legal.

Para tanto, do ponto de vista de mobilização de recursos, é necessário ampliar a escala das ações de conservação e restauração florestal no Brasil, que ainda são ínfimas: na Amazônia brasileira não passam de 115 mil hectares e não chegam a 1 milhão de hectares se considerarmos todos os biomas. O financiamento climático, mesmo sendo feito apenas por meio de crédito de carbono, é a opção mais viável para dar escala a essas iniciativas, mas o país precisa, primeiro, lidar com os gargalos para implementar políticas efetivas de conservação e restauração.

Gargalos para o financiamento da conservação e restauração florestal no Brasil

O cientista climático Carlos Nobre, co-presidente do Painel Científico para Amazônia, colocou o tamanho da ambição (e do desafio) na mesa, no painel “Financiando soluções baseadas na natureza e escalando a restauração florestal no Brasil” no dia 12 de novembro, no Brazil Hub. Nobre afirmou ser necessário restaurar pelo menos 50 milhões de hectares para salvar a Floresta Amazônica, 38 milhões a mais do que o país se comprometeu no Acordo de Paris para todos os biomas (2).

Nós também fomos enfáticos e afirmamos que nenhuma restauração será possível sem ações efetivas dos governos federal e estaduais para promover a regularização ambiental das propriedades rurais no Brasil. O poder de atração de financiamento climático está diretamente associado à capacidade de um país de propor e implementar suas políticas públicas e, enquanto isso, 99.8% do desmatamento no Brasil é ilegal ou, no mínimo, irregular (3). Mesmo em áreas que podem ser legalmente desmatadas, como excedentes de Reserva Legal, o proprietário rural precisa de uma autorização de supressão de vegetação, e nem isso está sendo feito. Segundo o MapBiomas, pelo menos 70% das áreas desmatadas na Amazônia extrapolaram o limite de 20%, chegando a mais de 35% da área do imóvel.

Se colocamos em paralelo as obrigações legais do país com as exigências do mercado de carbono como, por exemplo, o padrão VCS da Verra (Verified Carbon Standard), fica evidente que o que seria, em tese, um incentivo, acaba se tornando um obstáculo. Os padrões de crédito de carbono assumem que as leis no país são cumpridas e que as ações voltadas para implementar obrigações legais não são elegíveis para financiamento de carbono. Sem isso, não haveria garantia da “adicionalidade regulatória”, ou seja, a evidência de que o projeto vai além de exigências legais. Critérios de adicionalidade regulatória podem criar obstáculos para a restauração e a proteção de áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente (especialmente as margens dos rios), a menos que se reconheça que o cumprimento dessas obrigações vêm sendo sistematicamente ignorado pelos proprietários rurais e também pelos governos.

Somado a isto, o Brasil ainda precisa resolver outros gargalos para conseguir implementar e escalar políticas e programas de conservação e restauração florestal, a começar pela questão fundiária na Amazônia. Outro ponto crucial é o levantamento de recursos estruturantes para a cadeia produtiva de sementes e mudas de espécies nativas. A inexperiência gerencial e de negócios dos agentes da restauração florestal está na raiz desse gargalo para escalonar iniciativas de restauração. É preciso, também, adotar critérios para monitorar a regeneração natural e criar viabilidade financeira para produtos florestais, que tem o grande potencial de geração de trabalho e renda, essencial para tornar a restauração no Brasil um dos vetores da indução de um desenvolvimento com base sustentável e de uma economia de baixo carbono.

Abordagens alternativas 

Existe tanto uma necessidade quanto uma oportunidade para o desenvolvimento de abordagens programáticas para levantar investimentos financeiros para ação climática em escala no Brasil. O financiamento climático, para além dos créditos de carbono, pode ser feito, por exemplo, com a combinação de um marco regulatório fiscalizado pela sociedade civil e implementado com apoio de recursos financeiros privados internacionais. A questão a ser resolvida é: como combinar investimentos do capital privado com a gestão de paisagens e setores controlados pelo poder público?

Dois bons exemplos de como mecanismos de mercado podem impactar positivamente a efetividade de políticas públicas são o Programa SIMFlor (Suporte à Implementação do Código Florestal) e o RCF (Responsible Commodities Facility), lançados pela BVRio e parceiros em 2022. 

O Programa SIMFlor tem o objetivo de  remunerar a conservação voluntária dos excedentes de Reserva Legal. Para tanto, o programa dispõe de  R$ 1 bilhão para a aquisição de Cotas de Reserva Ambiental (CRAs) e outros ativos ambientais associados aos excedentes de vegetação além da Reserva Legal, criando impactos ambientais e climáticos positivos. Esse investimento vai resultar na conservação de 500 mil hectares de vegetação nativa (dos quais 100 mil hectares de excedente de Reserva Legal) e a manutenção de um estoque de 300 milhões de tCO2e nestas áreas.

Além do SIMFlor, a BVRio é coordenadora do Comitê Ambiental do RCF (Responsible Commodities Facility), uma inovação financeira para a agricultura sustentável no Brasil. O programa piloto do RCF assegurou 11 milhões de dólares em incentivos financeiros das maiores redes de supermercados do Reino Unido para financiar a produção de soja livre de desmatamento e conversão de ecossistemas (Deforestation and Conversion-free – DCF) no Cerrado brasileiro.

Contudo, não será possível escalonar iniciativas como essas sem apostar em estratégias subnacionais, sobretudo em uma República Federativa como é o caso do Brasil. É fundamental investir nos estados, onde está grande parte da responsabilidade do monitoramento, comando, controle e fomento da implementação do Código Florestal. Se considerarmos uma NDC (Nationally determined contributions) que se distribui em estados, porque não temos um financiamento climático como uma adoção da NDC? Portanto, vamos continuar debatendo abordagens alternativas e complementares, a começar por estabelecer as condições para a implementação do Código Florestal. 

O Código Florestal brasileiro é uma das mais avançadas e detalhadas legislações nacionais sobre proteção da vegetação nativa. No entanto, após uma década da última revisão, em 2012, sua implementação efetiva segue pendente, especialmente no que se refere ao equacionamento do déficit de vegetação nos imóveis que não possuem a cobertura mínima exigida na lei. Tanto o mercado voluntário de créditos de carbono quanto contribuições para ações climáticas baseadas na natureza possuem enorme potencial para acelerar e amplificar a implementação do Código Florestal. Mas, para isso, é preciso investir em um plano estratégico de escala nacional, que posicione este marco legal no centro de um processo de recuperação da economia em bases sustentáveis. Além disso, é preciso estabelecer um ‘Green New Deal’, que promova a proteção dos remanescentes de vegetação nativa, a recuperação de áreas degradadas e a intensificação sustentável da agropecuária e da silvicultura, gerando oportunidades de trabalho, renda e empreendedorismo no meio rural, ao mesmo tempo em que se garantem segurança climática, alimentar e fundiária.

Notas:

1. Quando o Brasil assinou o Acordo de Paris, em 2015, junto com outras 195 nações, o país estava emitindo 1,4 bilhão de toneladas de gás carbônico (CO2) ao ano. Em uma pesquisa recente sobre o acumulado histórico de emissões de gás carbônico, o Brasil foi apontado como o 4° país que mais emitiu gases do efeito estufa desde 1850 (Fonte).  

2. As metas do Acordo de Paris têm o objetivo em comum de limitar o aumento da temperatura média do planeta em 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais. Eventos climáticos extremos na história recente refletem o superaquecimento global que está em 1,1°C. De acordo com relatório das Nações Unidas, com a falta de progresso e a implementação somente das metas atuais, o planeta está a caminho de uma elevação de até 2,8°C. Um aumento de 2°C teria como consequência global até 14 vezes mais ondas de calor e 70% mais secas, segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).

3. Segundo relatório do MapBiomas, 99,8% dos desmatamentos no Brasil têm indício de ilegalidade e só 2% tiveram alguma providência do Ibama.